Tudo pode ser falado de Contos de amor, de loucura e de morte, exceto que seja um livro leve.
Neste, que foi o primeiro livro de Horacio Quiroga, os contos trazem uma marca forte de horror, como um tempero das Missões.
Não, não é um livro para ler e esquecer, assim como também não é um livro para ser devorado em uma tarde morna de domingo. Quiroga tem o poder de provocar a ansiedade, a agonia e calafrios diversos, e mesmo assim o mergulho na natureza humana, ou não, é tão profundo que o desejo de conhecer o que teremos a seguir nos faz prisioneiros de sua narrativa.
Quiroga foi um gênio das weird stories, aclamado por críticos do mundo todo como um dos mestres, e nesse volume apresentamos, em dezoito contos, um pouco de sua genialidade.
«Havia motivos de sobra para que mamãe perdesse a pouca animação que lhe restava. Ainda que de uma serenidade à toda prova, ela tinha horror aos cachorros raivosos por causa de algo horrível que presenciou na infância. Seus nervos, já enfermos pelo céu constantemente nublado e chuvoso, provocaram-lhe verdadeiras alucinações de cachorros que entravam a galope pela porta.
O temor tinha um motivo real. Aqui, como em todo lugar onde as pessoas pobres têm muito mais cachorros do que podem manter, as casas são todas cercadas por cachorros famintos. Os perigos do ofício — um tiro ou uma pedrada — provocam neles um verdadeiro comportamento de feras. Avançam lentos, agachados, com os músculos flácidos. Seus passos jamais são percebidos. Roubam — se a palavra tem sentido aqui — o quanto a fome atroz lhes exige. Ao menor rumor, não fogem porque isso faria barulho, mas afastam-se devagar, dobrando as patas. Ao chegar ao pasto, agacham-se e esperam assim, tranquilamente, meia ou uma hora, para avançar de novo.
Por isso, a ansiedade de minha mãe, pois sendo a nossa casa uma das tantas vigiadas por eles, estávamos sempre ameaçados pela visita dos cães raivosos, que lembrariam o caminho noturno». — O cão raivoso.