Relacionamos autoritarismo à política, sobretudo nesses tempos em que muitos valores humanistas têm sido ameaçados. Olhar para o tema, no entanto, exige que observemos o conceito por diversos ângulos, como um personagem complexo e enraizado, não só fora, mas também dentro de nós. O sociólogo Muniz Sodré, em seu excelente livro A comunicação do Grotesco, comenta que, para se apartar daquilo a que tem aversão, o homem aponta para o outro, estabelecendo uma fronteira de incomunicabilidade. É como se não houvesse dialética: o autoritarismo externo e nós como Dom Quixote a combatê-lo.
Esta antologia também aponta para o outro, claro, por que é importante evidenciar e reconhecer a ascensão do autoritarismo na esfera pública. Parte de nossa sociedade ainda se guia (e é guiada) por pensamentos conservadores e certezas absolutas que se impõem à revelia da diversidade de pontos de vista e das formas diferentes de amar, viver e pensar a coletividade. Esta obra, no entanto, vai além. Aqui, o autoritarismo é exposto tanto interna quanto externamente. Os 33 autores, cada um com sua sensibilidade, falam de sintomas na sociedade contemporânea, de relações humanas, de corpo. Por meio de contos refinados, 30 deles inéditos, partem do autoritarismo para elaborar uma simbologia que expõe nós e desafios, embates e inquietações.
A ideia surgiu dentro do Coletivo Escritorxs de Quinta, quando o autor Marcos Vinícius Almeida sugeriu que fizéssemos uma antologia sobre o tema. Entrei em contato com Marcelo Nocelli, editor que publica esta obra pela Reformatório, e Marcelo topou o projeto na hora. Então comecei a convidar autores de diferentes gerações, abordagens e propostas estéticas para compor um mosaico que valorizasse não só o tema, mas a diversidade da narrativa. Acredito que a valorização da diversidade é uma das melhores armas de combate ao autoritarismo.
Toda arte é política, mas, antes de ser política, ela deve ser arte (só assim ela se manifesta em sua potência). Falar sobre um tema não é apenas abordá-lo em sua perspectiva literal, com palavras repisadas e expressões gastas que o reduziriam a panfleto. Neste livro, os autores usam as palavras como pontes, fraturas, aberturas. Diferentes narradores e composições formais brincam com pontuação, imagens, métricas, de forma a tirar o leitor de uma estrutura conservadora, rígida e autoritária para chamá-lo a construir ativamente o texto.
A reflexão sobre a forma, exposta nas diferentes propostas estéticas, chama a atenção para o fato de que não é apenas o que se diz que interessa, mas como se diz. Nas dobraduras da linguagem, os autores de Contos Brutos iluminam temas subjacentes como os valores implícitos na forma e o papel dela na construção das possíveis discursividades sobre o mundo. Como bem disse Jacques Rancière, na obra O ódio à democracia, «Se as palavras servem para confundir as coisas, é por que a batalha a respeito das palavras é indissociável da batalha a respeito das coisas».
Anita Deak