“Rachaduras” elenca 22 contos que falam dos dilemas do desejo em uma sociedade marcada por insatisfações, medos inconscientes, impasses sociais e pela agitação dos acasos cotidianos. Os textos da autora apresentam uma escrita ao mesmo tempo segura e experimental, tendendo ao poético, por meio de uma prosa límpida e permeada de oralidade, própria de uma expressividade inventiva e repleta de meandros significativos.
O livro é dividido em três partes. “Felizes para sempre”, a seção de abertura, traz histórias de casamentos, vida com os filhos, noites atormentadas pela insônia e pelo ímpeto de mudança, pela aposta de, uma vez mais, alcançar o prazer incerto da vida diária. A promessa de felicidade duradoura se esvai nos meandros do cotidiano atarefado, no desgaste e nas pequenas fissuras das relações.
O teor irônico do nome da primeira seção se repete na segunda parte, «Príncipes e princesas», onde personagens em busca do amor romântico, ou simplesmente de satisfazer suas ilusões de paixão e interesse pelo outro, terminam por se desencontrar ou se desinteressar mutuamente. Em alguns dos contos a interferência das novas tecnologias indica que — além de facilitar a comunicação — as redes sociais, o celular e outros canais de informação também contribuem para os descaminhos dos desejos.
A terceira parte, que fecha o volume, intitula-se “Outros planos”. Os contos ganham um alcance temático mais amplo e se abrem para experiências da conflagração do espaço urbano, da desigualdade e das diferenças agudas. A linguagem e a estrutura dos contos também se deslocam para uma elaboração mais tensa. Sobressai o uso de uma linguagem das ruas, das gírias e de falas involuntárias. A experimentação também atinge a própria estrutura do conto, que tende a outras formas, como a do prontuário, da crônica e do diário. Algo da experiência pessoal da autora como médica psiquiátrica também avulta nessa seção sobre o descentramento do eu em um mundo de fortes contrastes, diversidade e sofrimento emocional.