«Ao contrário do que o pensamento positivista tentou prescritivamente estabelecer, o direito não se confunde com um conjunto de normas postas e impostas pelo legislador ou descobertas a partir do espírito do povo. Ao invés, o direito que o queira verdadeiramente ser não pode prescindir de uma específica predicação axiológica, à qual vai buscar o seu sentido e o seu fundamento. Na verdade, existe no direito uma inapagável dimensão ética, que não pode deixar de nos remeter para a ineliminável dignidade do ser humano, entendido como pessoa, na sua autonomia responsável. E se cada disciplina jurídica só pode ser, por isso, compreendida na necessária remissão para os princípios normativos (e para o princípio do direito enquanto direito), não é menos certo que há determinados domínios normativos que, pelas questões que colocam, nos situam no epicentro da axiologia predicativa da juridicidade. A tutela da pessoa ainda não nascida é, exatamente, um desses domínios. Tendo tido oportunidade de nos pronunciar sobre a questão em diversos fóruns, fomos recentemente sensibilizados para a importância de partilhar algumas das nossas reflexões além-fronteiras, contribuindo, ainda que modestamente, para um debate que parece recrudescer no ordenamento jurídico brasileiro. O incentivo chegou pelas palavras de um dos nossos Mestres, o Professor Doutor Diogo Leite Campos, insigne civilista português, que, pela notoriedade da sua obra, dispensa apresentações também do outro lado do Atlântico, e, racionalmente, compreende-se pela articulação de duas ideias chave: a centralidade (do ponto de vista jurídico, ético e humano) do tema e a consciência de que, pese embora o Brasil seja nesta matéria um exemplo a seguir, é importante sedimentar argumentos para que, numa altura em que recrudesce no horizonte a discussão em torno dos nascituros e da sua proteção, se esteja consciente do exato alcance do que se discute. A nossa reflexão está, por isso, longe de ser exaustiva e centra-se preferencialmente no âmbito do direito privado, sem embargo de eventuais incursões sistematicamente justificadas pelos meandros do direito público».
Mafalda Miranda Barbosa