Devo pedir licença a vocês: eu não sei como, mas devo. Devemos pedir licença para aquilo que mais amamos, odiamos ou para as memórias que, às vezes, são muito gostosas de se lembrar, porém a saudade fura com dor o peito. Eu tenho uma memória bastante vaga de um dia, bem criança, e meu pai chegando em casa, trazendo uma caixa de morango. Talvez não seja, mas acredito que foi a primeira vez que comi essa fruta. Desde então, é a minha fruta favorita. Esta é uma entre as cinco lembranças que tenho dele. Devo dizer a vocês também que não sou muito fã de interrupções bruscas. Eu devo pedir licença a vocês porque quando Ela chegou, Ela não pediu licença. Nos farelos das minhas memórias, consigo presenciar, novamente, a sua visita quando eu tinha apenas cinco anos. Ela soprou no ouvido daquele que me gerou e arrancou da minha visão a primeira camada da sua existência. Foi a primeira vez que eu olhei para Ela e, já no seu primeiro encontro comigo, vazou muito Dela em mim. Sem pedir licença, todo o temor do mundo, com suas dúvidas e questões, invadiu o meu olhar e expandiu a minha visão. Aos poucos, fui percebendo as suas visitas frequentes no bairro em que resido, onde, para muitos olhos, não é intrigante a sua vinda, mesmo que seja gritada a toda boca que não deixam falar. Ela leva as pessoas em tempos diferentes, mas sempre surge sem esperar, mesmo que já a estejam esperando. Ela leva num toque rápido do seu dedo na cabeça de outro. No seu toque, no coração. No seu mínimo toque, em todo um corpo. No toque que estava à espera em toda uma agonia e resistência, mas que, no final, se aproxima e se vai.