Por Edimilson de Almeida Pereira
O tráfico de pessoas escravizadas tensiona até nossos dias as relações entre a Europa, a África e as Américas. Em A porta da viagem sem retorno, David Diop encena dramas humanos num período contraditório marcado pelo espírito iluminista e a violência do escravismo.
No leito de morte, o naturalista Michel Adanson — inspirado no homônimo histórico (1727–1806), que elaborou um sistema de classificação das plantas, incluindo a descrição do baobá — se martiriza por não ter contado toda sua história à filha Aglaé. Apesar de ter escrito suas memórias da África e um tratado de botânica, faltou-lhe tornar pública a mais relevante de suas experiências. Num último suspiro, limita-se a murmurar um nome-enigma. Paralelamente, por meio da vida sentimental da Agalé, a obra descortina os jogos de amor e poder na sociedade francesa da segunda metade do século XVIII.
Ler A porta da viagem sem retorno é reencontrar convergências entre o continente africano e o território da diáspora, a exemplo do provérbio Fulbe («A narrativa é o lugar onde se encontra o passado») citado pelo linguista senegalês Pathé Diagne e da epígrafe de Viva o povo brasileiro («O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias») anotada por João Ubaldo Ribeiro.
Diop demonstra que a duração dos eventos depende das narrativas que os personagens tecem uns sobre os outros. Por isso, a palavra que inaugura o mundo se torna o eixo mais potente do romance. É necessário atentar para suas derivações que dão forma ao passado sob perspectivas que exaltam o diálogo entre as culturas ou que fixam, desde fora, a imagem do outro. Ciente dessas oscilações, o autor conduz os personagens por uma teia de viagens, onde cada um espera encontrar o fio da sua própria história.