O sentimento de culpa e a raiva; os laços biológicos e os escolhidos, a amizade, a paixão; o corpo, suas cicatrizes, os medos e a maternidade que os ensina e transmite. Aixa de la Cruz tomou todos esses elementos que por hábito consideramos um componente dado, ou pelo menos já adquirido, das nossas histórias, e transformou-os em material para uma acusação ora intransigente, impiedosa, ora bem-humorada e docemente naïve; porém, sempre honesta, beirando a brutalidade. Pode-se permitir: este indócil memoir é o livro de uma escritora que quer se libertar, e libertar quem a lê, do domínio das paixões tristes, das escolhas nunca escolhidas e, portanto, apenas sofridas. Demonstrando, com uma voz irônica, pungente, arejada, que a autoficção pode até parecer «coisa de gente chata e presunçosa»; mas que, quando mais do que brincar com as fronteiras entre realidade e ficção a escrita se lança a exibir uma intimidade sem máscaras, a revelar que não existem identidades fixas nem estáveis e que nossos corpos, com todas as suas cicatrizes, são a única prova material de que temos algo parecido com uma história, ela se torna uma brincadeira muito séria. Uma brincadeira que também o leitor é chamado a participar, a responder a narrativa verdadeira de uma vida — aquela da autora, de origem basca, que no limiar dos seus trinta anos decide prestar contas com um passado breve mas já denso — com a sua própria história: um ato de libertação que transforma, e nos obriga a interpelar as palavras com a cabeça aberta e o coração preparado.