O livro que se anuncia à maneira de um manual é, pelo contrário, uma coleção sensível de retratos de personagens. O olhar está atento às pessoas com que cruza, sejam elas reais ou imaginárias. Uma mulher feita de feixes de setas, apontando para todos os lados; um escritor composto por cheiros guardados em frascos; alguém que equilibra seu segredo em dois pés que não poderiam ser de uma mesma pessoa; personagens presas na movência do sonho e do pesadelo que, por sua vez, enlaçam o escritor. Trabalhadores, gente maltratada, corpos feitos de cacos, casais duplicados entre o desejo e a repulsa.
Em Como escovar os dentes num incêndio, a despeito da obscenidade dos dias que correm, ou justamente por causa dela, a escrita se faz uma espécie de cuidado em meio às chamas. A ideia de um hábito deslocado, ou mantido apesar de tudo, manda os sentidos se desacostumarem do horror — estranhando a cena.
A escrita, o olhar, a poesia encontrada no pó da memória, trazem algo como um contrapeso ao mundo. O gesto estilístico flerta com a ingenuidade sem se resumir a ela, pois quase sempre a consistência do real cobra de volta seu preço. Tudo parece ter a ver com o tempo, perdido, reencontrado, “um manjado fantasma” que as palavras tentam enredar.
Ana Paula Pacheco