Acasos se conjugam e se tornam destino, com a marca da fatalidade, daquilo que nos afeta a fundo, mas diante do qual somos impotentes. O que não tem remédio, remediado não está. Eu gostaria de ser espírita, para ter a chance de reviver a vida de um modo mais correto, mas nem isso o espírita pode, pois se reencarnar vai viver outra vida, com todos os novos erros que irão aparecer. Dizem que a postura brasileira é “me engana que eu gosto”. Se não gosto de ser enganado, não deveria enganar nem a mim nem a outros, mas quantas vezes nos enganamos sem querer? Não adianta fingir, não vou ser melhor do que sou. Também não me torno melhor fazendo de conta que outros são piores. Tenho de conviver com medianidades, a começar pelas minhas. Se as religiões se baseiam no me engana que eu gosto, se atendem a anseios profundos, como o de ser preservado para sempre, é preciso antes ver de onde provém esse nosso desejo, ver que o problema está primeiro em nós, não sendo solução uma crença que não muda os fatos. O eu-narrador desses contos de Casos do acaso é muito diversificado: pode ser um químico nordestino, um morador de Berlim, um aposentado que anda pela praia, um velho professor mineiro, um perseguido político, um divorciado a refletir sobre suas ex-mulheres e assim por diante. Qualquer um pode dizer eu de si mesmo. O que parece uma identidade numérica, a ser identificada com o eu do autor, revela ser uma diversidade empírica e ficcional. Cada eu tem a sua história, cada qual é o outro de si mesmo. Por isso é que cada um tem a sua história, na qual momentos significativos da existência são repassados. Flávio R. Kothe é conhecido como ensaísta e tradutor, mas a criação ficcional não é novidade em sua trajetória. Publicou seis livros de poemas, a novela Botucaraí e, em 2016, o romance histórico e político O Muro.