O anticristo, de Friedrich Nietzsche, é uma das obras mais polêmicas e provocativas da história da filosofia. Redigido no verão e outono de 1888, com o filósofo já afetado pela doença que o levaria à morte, o texto teve sua primeira impressão em 1895, com o subtítulo Versuch einer Kritik des Christenthums ('Tentativa de uma crítica do cristianismo').Segundo Walter A. Kaufmann, após completar Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche abandonou os planos de escrever uma obra intitulada Vontade de potência, decidindo por escrever um livro dividido em quatro partes, chamado Revaloração de todos os valores. A primeira parte foi concluída e recebeu o nome de O anticristo.O título Der Antichrist é ambíguo, pois o termo 'Christ', em alemão, significa tanto 'Cristo' quanto 'cristão'. Num primeiro momento, 'Antichrist' evoca a idéia do anticristo do Apocalipse, alcançando o objetivo de Nietzsche de ser tão provocativo quanto possível. Por outro lado, e à luz das passagens 38 e 47 da obra, o título só pode ser significar 'O anticristão', o que estaria mais de acordo com o espírito do texto.A obra é dividida em aforismos, o que confere um estilo mais livre à escrita mas também torna mais difícil a sistematização do texto, seu agrupamento em temas e seu encadeamento lógico. Esta aparente simplicidade da escrita em aforismos é uma das principais razões de Nietzsche ser um dos filósofos mais 'acessíveis' e lidos nos círculos de fora da filosofia, e também um dos mais distorcidos e mal compreendidos.Entre os principais temas da obra encontra-se a relação entre judaísmo e cristianismo, entendida por Kaufmann como uma reação de Nietzsche ao antissemitismo cada vez mais crescente na Alemanha de seu tempo. Bernhard Förster, casado com sua irmã, por exemplo, afirmava que a brilhante figura do Salvador apareceu entre os judeus porque a luz precisava brilhar na mais depravada de todas as nações. Diante do avanço deste antissemitismo cristão, Nietzsche mostra em O anticristo que o cristianismo não era nada mais que uma continuação do judaísmo.O repúdio de Nietzsche a Cristo não pode ser entendido sem que se entenda a distinção que ele faz entre o cristianismo contemporâneo e o evangelho original, entre o Jesus de Nazaré e o Jesus de Paulo. Sua crítica ao cristianismo passa pela crítica dos valores, um dos temas que ele já havia trabalhado em obras como Genealogia da moral. Logo no início ele se pergunta: 'o que é ruim?', e responde: tudo que se origina da fraqueza. 'O que é bom? Tudo o que aumenta no homem o sentimento de poder, a vontade de potência, o poder mesmo'.O cristianismo é a religião do ressentimento, considerado por Nietzsche como o ódio impotente contra aquilo que não se pode ser ou não se pode ter. Em sua Genealogia da moral ele define assim este conceito: 'A revolta dos escravos na moral contemporânea começa quando o ressentimento se torna criador e gera valores: ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a da ação, e vingança imaginária'. A moral cristã, segundo Nietzsche, é fruto do ressentimento, no sentido de ser manifestação do ódio contra os valores da casta superior aristocrática, inacessíveis aos indivíduos inferiores.Nietzsche afirma que sua crítica é direcionada aos teólogos, ou a tudo que tem sangue de teólogo, como a filosofia alemã. É a este 'instinto de teólogo' que ele faz guerra. O que um teólogo considera verdadeiro, isso necessariamente será falso, de modo que tem-se aqui praticamente um critério de verdade: se um teólogo diz que algo é verdadeiro, então é falso; se ele diz que é falso, então é verdadeiro. Para Nietzsche, o teólogo inverte os valores de tal maneira que tudo o que rebaixa a vida e a fere, isso ele chama 'verdadeiro', e tudo o que, ao contrário, a afirma, a eleva, a faz triunfar, isso ele considera falso.Em contraposição aos valores dos teólogos, o que 'nós, os espíritos livres, queremos', afirma Nietzsche, é a 'transvaloração de todos os valores' ('Umwertung aller Werte'). Os espíritos livres não consideram mais os homens como derivados de um conceito, de um espírito, de uma divindade, mas os colocam novamente entre os animais. No cristianismo, a moral e a religião se afastaram da realidade de tal maneira que todas as suas causas e efeitos são imaginários. Exemplos de causas imaginárias: Deus, alma, espírito, eu, livre arbítrio, etc. Seus efeitos imaginários: pecado, redenção, misericórdia, juízo, etc.Para Nietzsche, a castração antinatural de deus como apenas 'bom' representa a perda da fé de um povo em seu futuro. É um processo que se desencadeia quando se é derrotado, quando os valores da derrota precisam entrar na consciência como condições de preservação.A história dos judeus deixa isso claro. Quando o povo estava em Canaã, seu deus era forte. Era o Deus que ordenou entrar na terra, matar a todos, inclusive mulheres e crianças, e tomar posse. Muitos séculos depois, quando os judeus se encontravam exilados na Babilônia, houve uma transformação: aq