Uma Antropologia do Estado com alto teor de reflexão teórica e envolvimento etnográfico é o que oferecem com maestria os textos dos organizadores e autores deste livro. Sua leitura é um convite e um desafio ao diálogo entre antropólogos, cientistas políticos e sociólogos que se debruçam sobre as práticas estatais. O Estado, suas políticas e seus efeitos, sua unidade e sua dispersão, são analisados em seus contextos brasileiro e latino-americano em algumas áreas diversas: política indigenista, políticas culturais e a relação do Estado com a religião. A principal enunciação teórica é concisa: os Estados não são formados de uma vez por todas. Contrapõe-se assim à a noção de Estado como “ser”, ou “ente coeso”, presente na linguagem cotidiana e jurídica e que muitas vezes se deixa aparecer como tal na linguagem das ciências sociais. Embora concisa, a enunciação é altamente complexa. Leva a sério que os vários momentos e faces do Estado e das suas práticas políticas respondem a jogos constantes de correlações de forças entre classes, etnias, raças e gêneros.
O Estado visto como processo, e não como ente, permite a articulação do passado, do presente e do futuro, de tal modo que formas antigas coloniais podem ser reveladas ao se apresentarem com novas roupagens no período pós-colonial. Antonio Carlos de Souza Lima, ao analisar a gestação (formação) e a gerência do poder tutelar sobre os povos indígenas introduzida e regulamentada pelo Estado brasileiro sob o regime republicano nos anos 1910/20 do século passado, revela, de forma clara, os princípios da colonialidade advindas do passado e suas atualizações colonialistas presentificadas.
Se o jogo de correlações de forças sociais sempre presentes pressupõe a produção de hegemonia e a produção de desigualdades e exclusão de alteridades, não há espaço teórico para entender a hegemonia produzida como rei cada. Há espaço teórico para analisar o impacto dos movimentos contra-hegemônicos de segmentos subalternos que buscam o acesso a direitos, assim como o impacto dos movimentos de elites que busquem mais privilégios, mais poder e imponham maior desigualdade.
O Estado não é assim redutível a um entendimento como se fosse apenas o exercício de “tecnologias de poder” sobre “os dominados”. Embora as práticas estatais sejam exercidas como tecnologias de poder, impactam diferentemente os segmentos sociais e não são impermeáveis a transformações contínuas ou disruptivas. Está em jogo tanto a expansão da democratização como a configuração de um Estado autoritário. O último capítulo e o posfácio se voltam para o atual momento político no Brasil. Um governo que busca um poder autoritário produz o paradoxo de um notório desmonte de instituições estatais que até então se voltavam para a defesa (ainda que parcial e precária) dos povos indígenas, dos quilombolas e do meio ambiente. Não só: lado a lado, notório desmonte das instituições em favor dos direitos humanos, de instituições científicas, de ataque aos antropólogos que parecem estar “incomodando” e de uma necrofilia produzida pelo descaso em relação à pandemia.
Lia Zanotta Machado
Professora Emérita Universidade de Brasília